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Por que vale a pena rever Laranja Mecânica

Não há nada que se compare à experiência de assistir a um clássico na tela de um cinema, da forma como foi  desejada por seus realizadores. No último dia 26, foi lançada no Cinesesc a versão restaurada em 4k (Ultra HD) para a celebração do aniversário de Laranja Mecânica, um dos destaques do grandíssimo catálogo do mestre Stanley Kubrick.

Laranja Mecânica foi marcante por muitas questões, sendo listado como 46o melhor filme na Lista dos 100 Melhores do AFI (American Film Institute); seu protagonista, Alex DeLarge, é considerado pelo mesmo instituto o 12o maior vilão da história do cinema; e, em 2010, a revista Time o colocou como o 9o filme ridiculamente mais violento da história.

Depois de desistir de um dos projetos que mais se dedicou mas nunca conseguiu produzir (a biografia de Napoleão Bonaparte) o diretor Stanley Kubrick finalmente leu o livro escrito por Anthony Burgess, que havia sido dado por seu produtor. O cineasta se identificou instantaneamente com os temas filosóficos e ideológicos da história e principalmente com o potencial visual e simbólico da trama para uma adaptação cinematográfica.

Este era mais um projeto ousado escolhido pelo diretor, uma vez que apresentaria um personagem principal pervertido e violento – e, o principal objetivo do filme em sua primeira parte, é fazer com que o público se identifique com ele ao ponto de considera-lo uma vítima ao passar pelo tratamento Ludovico.

A trama apresenta Alex, um jovem delinquente que faz parte de uma gangue em uma Londres distópica – que, ao que tudo indica visualmente, passa por um regime socialista, graças às decorações e estética russa ao redor da cidade (até que um governo totalitário toma controle).

Por conta das infinitas atrocidades cometidas por Alex, ele acaba sendo preso e passa por um tratamento psicológico chamado Ludovico – que a partir de uma técnica behaviourista, tenta criar no personagem aversão à violência.

Assim como no livro, o filme faz sua crítica a esse tipo de psicologia (e essa espécie de tratamento, que vinha sendo testado em projetos da CIA). O filme também acaba sem tomar partidos, uma vez que tanto o lado conservador totalitário e o liberal usam Alex como meios para o seu fim – o conservador orgulhosamente apresenta Alex como uma solução para os problemas da sociedade enquanto o liberal tenta levar a população contra o novo regime demonstrando o lado negativo deste tratamento.

A trama também discute a definição de bondade: Alex acaba se tornando uma pessoa que não consegue cometer crimes ou ser violenta, mas isso não vem de dentro – ele é então a Laranja Mecânica do título, aparentemente natural por fora, mas mecânica por dentro, graças ao tratamento de aversão a que foi submetido. Também põe em questão o quanto da violência e perversão de Alex é um produto da sociedade em que vive, já que decorações que remetem a pornografia são dispostas em sua casa e de outras pessoas.

Kubrick teve a difícil tarefa de fazer com que a plateia simpatizasse com Alex para que o personagem se tornasse uma vítima e passasse por um momento de redenção no segundo e terceiro atos do filme. Isso fica claro na forma que o diretor decidiu filmar as primeiras cenas e estruturou seu roteiro – a câmera se posiciona sempre de uma forma distante e superior às vítimas de Alex e próxima ao personagem principal em seus contra-planos. Além disso, cada cena violenta era seguida por um momento mais humano de Alex.

Novamente, o diretor inovou ao fazer esse filme, criando técnicas e arriscando novas formas para conseguir realizar seus efeitos especiais que influenciariam diversos cineastas no futuro – principalmente o uso de lentes grande-angulares para tornar o universo fantástico do filme e o slow motion e aceleração de algumas sequências buscando uma dramaticidade maior, principalmente nos momentos violentos.

A trilha sonora que, assim como em 2001, usava músicas clássicas para os momentos dramáticos (provavelmente a mais marcante foi a 9a Sinfonia, de Beethoven). As músicas modernas feitas originalmente para o filme, compostas por Wendy Carlos e que tinham como proposta criar uma contraposição às clássicas, acabariam se tornando grande influência para bandas dos anos 80 que usavam sintetizadores como seu principal instrumento.

Alex foi uma atuação icônica de um jovem Malcolm McDowell (e a maior de sua carreira), fazendo parte da cultura pop até hoje em dia e ainda sendo considerada um marco, servindo como referência para grandes artistas – diversas vezes Heath Ledger e Christopher Nolan comentaram o quanto Alex foi uma inspiração para a interpretação do Coringa em O Cavaleiro das Trevas, em um dos muitos exemplos que podemos dar.

O ator foi contratado depois que Kubrick assistiu ao filme If… . Logo gravou, na própria casa do diretor, toda a narração do filme – na verdade, McDowell leu o livro inteiro na frente de Kubrick e sua narração serviria de base para a escrita do roteiro.

Malcolm passou por uma experiência traumática, chegando a quebrar suas costelas em uma das cenas e a ter sua córnea arranhada durante a cena do tratamento, ficando temporariamente cego. Ainda assim, o ator foi tão bem no papel que precisava de poucos takes em cada cena (há lendas de que o diretor inglês já chegou a fazer 70 takes em uma cena, de tão perfeccionista que era). Na verdade, Laranja Mecânica foi o filme mais rapidamente produzido na carreira de Kubrick.

O filme foi um dos poucos da carreira do diretor que alcançaram um sucesso comercial e crítico instantâneo. Laranja Mecânica recebeu diversos elogios por sua temática controversa e ousada, o universo e estilo fantástico criado por Kubrick, além da atuação de Malcolm McDowell. Posteriormente, seria indicado ao Oscar de Melhor Direção, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Filme e Melhor Edição. Até hoje, é considerado um dos maiores clássicos da história do cinema e uma das grandes obras de Stanley Kubrick.

A versão restaurada de Laranja Mecânica está em cartaz no Cinesesc, na Rua Augusta 2 075.