- Ouma Katrina Esau tornou-se detentora única da fluência após a morte do penúltimo falante, em dezembro de 2021.
- N|uu corre risco extremo de extinção já que restou apenas um falante fluente da língua.
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Há cerca de 20 anos um dicionário digital vem sendo produzido para preservar vocabulário e gramática dessa língua indígena sul‐africana.
A língua N|uu, considerada uma das mais ameaçadas do mundo, está agora nas mãos de uma única pessoa fluente: Ouma Katrina Esau. Natural da comunidade Khomani, no sul da África, Esau assumiu esse papel após a morte do penúltimo falante, em dezembro de 2021, quando a dualidade de falantes fluentes foi reduzida a apenas ela.
Apesar disso, esforços para a documentação, preservação e valorização do idioma perduram. Projetos como o desenvolvimento de um dicionário digital, iniciado há cerca de duas décadas, apontam para uma tentativa sistemática de manter a língua viva, mesmo que fora do uso cotidiano.
Origem e histórico de declínio da N|uu
A língua N|uu é originária do sul da África e faz parte da cultura do povo San (ou Bushmen. Ao longo da colonização, especialmente durante a expansão do Império Britânico no século XIX, várias medidas de divisão territorial — cercas, fronteiras, exigência de documentação — fragmentaram comunidades que por muito tempo viviam em mobilidade entre regiões que hoje pertencem à África do Sul, Namíbia e Botsuana.
Na segunda metade do século XX acreditava-se até que a N|uu já estivesse extinta. Foi só com o trabalho do sociolinguista Nigel Crawhall e de organizações como a ONU, nos anos 1990, que se descobriu que cerca de 25 membros da comunidade Khomani tinham “alguma competência” nessa língua, ainda que não fossem falantes plenamente fluentes.
A situação atual com Ouma Katrina Esau
Com a morte do penúltimo falante, em dezembro de 2021, Ouma Katrina Esau passou a ser a única pessoa completamente fluente em N|uu. Ela participou da criação do dicionário digital da língua, projeto iniciado há cerca de 20 anos, que reúne vocabulário, gramática e outras informações linguísticas essenciais para documentação da língua.
A linguista Kerry Jones destaca que, para a comunidade, a língua era também um símbolo de identidade. Algumas pessoas mais velhas afirmavam possuir sangue San e reivindicavam esse pertencimento justamente por ainda falarem N|uu. Com a morte dessas pessoas, a língua se tornou ainda mais rara.
Desafios para a preservação da língua
Manter uma língua viva quando há apenas uma pessoa fluente impõe desafios singulares. Primeiro, há a necessidade de registrar o idioma de forma sistemática: sons, vocabulário, estrutura gramatical, expressões culturais. Projetos como o dicionário digital da N|uu são essenciais para essa tarefa.
Além disso, há o desafio de transmissão intergeracional. Se nenhuma nova pessoa aprender a língua desde pequena, corre-se o risco de que ela “sobreviva” apenas como objeto acadêmico, sem uso prático ou comunitário. A documentação ajuda, mas não resolve a falta de falantes ativos.
Outro aspecto importante é o reconhecimento social e institucional: apoio de governos, instituições culturais, universidades. Sem financiamento ou políticas de incentivo, qualquer projeto corre o risco de ficar restrito aos registros, sem conseguir fomentar aprendizagem ou uso real.
Significado cultural e impacto
A N|uu representa muito mais do que um sistema de comunicação: carrega histórias, memórias, rituais, modos de ver o mundo do povo San. Cada palavra reflete contextos ecológicos, filosóficos e culturais que, uma vez perdidos, dificilmente são recuperados integralmente.
A perda da língua implica também em perda de diversidade linguística global, que é um patrimônio da humanidade. Línguas como N|uu ensinam sobre variação lingüística, sobre formas diferentes de organizar significado, sobre fonética e fonologia muito distintas do que é dominado pelas línguas mundiais.
Caminhos possíveis para revitalização
Uma estratégia é investir em programas de ensino da língua, mesmo que em escala reduzida — criar cursos, oficinas, materiais didáticos para membros da comunidade interessada. O dicionário digital é parte disso; outros registros orais ou visuais também são úteis.
Cooperação internacional pode trazer apoio técnico e financeiro. Organizações culturais, universidades e institutos linguísticos podem apoiar com gravações, gramática descritiva, curadoria de conteúdo.
É importante também envolver a comunidade Khomani diretamente, garantindo que os esforços respeitem suas formas de saber, seus direitos culturais, seu protagonismo — não apenas como objeto de estudo, mas como agentes ativos na preservação.