Quando pensamos em obras que se tornam ícones culturais, é natural imaginar uma maturidade intelectual prolongada, uma década de reflexão, uma progressiva lapidação de ideias. “Frankenstein” não surgiu assim. Ele nasceu de um verão excepcional, em circunstâncias improváveis, em um ambiente onde literatura, ciência e filosofia se misturavam num grau raríssimo.
E é ainda mais extraordinário considerar que tudo isso aconteceu quando Mary Shelley tinha apenas 18 anos. A gênese do romance é tão cinematográfica que, muitas vezes, ela própria se torna lenda. Mas é uma lenda real — e histórica — que começa às margens do Lago de Genebra, em 1816, num dos verões mais peculiares da história do clima.
Em 1816, uma erupção vulcânica colosal — o Monte Tambora, na Indonésia — lançou tanto material na atmosfera que o planeta literalmente esfriou. Foi o chamado “Ano Sem Verão”. As colheitas falharam, as temperaturas despencaram, o céu europeu ficava estranho e opaco, como se o sol estivesse sempre enfraquecido. E foi justamente nesse contexto meteorológico improvável que Mary Godwin (ainda não Shelley), acompanhada de Percy Shelley, foi passar uma temporada na Villa Diodati, residência em Genebra onde eles se hospedariam com Lord Byron e o médico John Polidori.
Essas personagens importam não só pelos nomes, mas pela atmosfera intelectual que formavam. Byron era talvez o homem de maior impacto cultural da Europa naquele momento. Shelley era já um poeta notável. Polidori era médico — e estudava teorias emergentes sobre eletricidade e vida. Mary circulava nesse ambiente não como espectadora silenciosa, mas como alguém com sólida formação intelectual, orientada desde a infância pela mãe (Mary Wollstonecraft, filósofa feminista pioneira) e pelo pai (William Godwin, um dos grandes pensadores do século XVIII tardio).
Não foi um verão de piqueniques. Foi um verão de tempestades, de noites longas, de janelas fechadas contra o vento e de discussões filosóficas sobre alma, matéria, ciência e destino humano.
Em meio ao tédio provocado pelo clima hostil, um dia Byron propôs um jogo: cada um deveria escrever uma história de terror. A proposta não era trivial — vinha num momento em que todos já estavam debatendo sobre as fronteiras entre vida e matéria, sobre correntes elétricas capazes de estimular músculos, sobre a possibilidade de que a eletricidade, de algum modo, tivesse relação com aquilo que chamavam de “força vital”. Hoje chamamos isso, de forma mais precisa, de bioeletricidade — a ideia de que impulsos elétricos podem animar tecido vivo. Na época, era fronteira científica.
Esse é um ponto central: Mary Shelley não inventa “Frankenstein” a partir do oculto, mas a partir da ciência que estava em plena ebulição teórica. Byron, Shelley e Polidori comentavam os experimentos que atravessavam a Europa. Comentavam Darwin, comentavam Galvani, comentavam a hipótese de que talvez a vida pudesse ser tocada, provocada, estimulada por forças elétricas. Enquanto isso, Mary, muito jovem, absorvia tudo — atenta, curiosa, conectada a esse universo intelectual em que ciência e filosofia se sobrepunham.
Dali surge o desafio criativo. Cada um deveria inventar sua narrativa. Polidori acabaria produzindo “The Vampyre”, obra que seria precursora direta do vampiro moderno. Mary, porém, passaria dias sem conseguir imaginar nada que satisfizesse a altura da provocação. Até que uma noite, durante uma insônia, ela teve uma visão.
Mary descreve essa visão em um dos prefácios posteriores do livro: viu, em sua imaginação, “o pálido estudante de artes profanas, ajoelhado ao lado da coisa que havia montado, que depois de animada pelo poder de algum motor fantástico, mostrava sinais de movimento”. A frase tem força imagética. E ela acontece antes da palavra escrita. A narrativa não nasce de uma frase feliz. Ela nasce de uma imagem.
Foi essa imagem — a de um corpo composto por partes, animado por técnica — que se tornou o núcleo do romance. Mary percebeu que havia ali não apenas terror, mas uma pergunta filosófica profunda: até que ponto o ser humano, ao desvendar as forças da natureza, poderia criar vida; e, sobretudo, o que aconteceria com essa vida se ela fosse criada sem cuidado? Esse deslocamento — da criação para a consequência — é o que fará o romance, futuramente, ser reconhecido como matriz da ficção científica.
Ela começa a escrever. Ela estrutura. Ela desenvolve personagem, tom, ritmo, argumento. Ela não faz um conto curto para uma anedota de salão. Ela cria um romance.
Importa notar que “Frankenstein” não é publicado em 1816. O verão é o gatilho; o livro leva tempo. Mary escreve o rascunho no fim de 1816 e ao longo de 1817. Percy Shelley revisa, faz sugestões, encoraja, ajuda com estrutura; mas o núcleo intelectual é de Mary. Em 1818, o romance é publicado anonimamente. Só depois se tornaria explícito que era obra de uma jovem autora. E pouco tempo depois — com revisões posteriores — a força filosófica do texto se solidificaria.
A gênese do livro, portanto, é uma síntese rara: um fenômeno climático extraordinário, um encontro improvável entre grandes mentes do seu tempo, um desafio de escrita e uma imaginação capaz de transformar ciência em hipótese literária. Não foi uma “inspiração repentina” isolada. Foi um ecossistema de ideias, tensões, leituras, conversas e contextos que permitiram a Mary Shelley ver algo que ninguém havia visto antes.
Quando pensamos que ela tinha apenas 18 anos — e estava escrevendo o livro que fundaria o imaginário da ficção científica — percebemos que “Frankenstein” não é apenas o resultado de um verão. É o resultado de uma jovem que compreendeu que a ciência não era só técnica. Era destino. E que, ao narrar esse destino, ela mudou a história da literatura.
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