Quando pensamos em perfume, a França é a referência imediata, mas o verdadeiro coração dessa indústria bate numa pequena cidade provençal: Grasse. Não é apenas um título simbólico; em 2018, o savoir-faire de Grasse foi declarado patrimônio da humanidade pela UNESCO.
Mas como uma cidade medieval de curtumes se tornou o trono da perfumaria mundial? A resposta passa por reis, alquimistas e dinastias industriais.
De Catarina de Médici aos Gantiers-Parfumeurs
A história de Grasse muda radicalmente no século XVI, graças a uma figura histórica: Catarina de Médici. Ao chegar à corte francesa, a rainha trouxe consigo a moda florentina das luvas de couro. No entanto, o processo de curtimento em Grasse deixava um cheiro insuportável na pele.
Foi Jean de Galimard, senhor de Seranon e fundador da corporação dos Gantiers-Parfumeurs (Luveiros-Perfumistas), quem teve a ideia de banhar as luvas em banhos de aromas locais (lavanda, murta, jasmim). O produto virou febre na corte de Luís XIII e, posteriormente, na “Corte Perfumada” de Luís XV, onde a etiqueta exigia uma fragrância diferente para cada dia da semana. Com o tempo, o couro perdeu força, mas o perfume ficou.
O Terroir: A Rosa de Maio e o Jasmim de Grasse
Grasse não seria nada sem seu microclima. Protegida dos ventos pelos Alpes e banhada pelo sol do Mediterrâneo, a região produz flores com uma complexidade olfativa inigualável em outras partes do mundo.
Duas estrelas dominam esse cenário:
• A Rosa Centifolia (Rosa de Maio): Colhida apenas em maio, ao amanhecer. É a alma do Nº 5 da Chanel.
• O Jasmim Grandiflorum: Mais frutado e animalico que o jasmim indiano ou egípcio.
A importância é tamanha que grandes casas de luxo blindaram sua produção. A Chanel, por exemplo, firmou em 1987 uma parceria histórica com a família Mul, proprietária de campos na região de Pégomas, garantindo que cada frasco de seus extratos contenha exclusivamente flores cultivadas ali, mantendo a assinatura olfativa intacta há décadas.
As “Três Grandes” e a Industrialização
No século XVIII e XIX, a perfumaria deixa de ser artesanal e vira indústria. Três nomes moldaram a arquitetura da cidade e existem até hoje, abertos à visitação:
• Parfumerie Galimard (1747): A pioneira, ligada às raízes dos luveiros.
• Molinard (1849): Famosa por seus frascos assinados por Lalique e Baccarat, e pelo icônico perfume Habanita (1921), que revolucionou ao usar vetiver (nota masculina) para mulheres.
• Parfumerie Fragonard (1926): Fundada por Eugène Fuchs, que decidiu homenagear o filho mais ilustre da cidade, o pintor rococó Jean-Honoré Fragonard. Hoje, é talvez a marca mais visível turisticamente na região.
O Berço dos “Narizes”: Escolas e Mestres
Grasse não produz apenas óleos; produz “Narizes” (Nez). É lá que grandes perfumistas nascem ou são treinados.
A cidade é o lar do GIP (Grasse Institute of Perfumery), uma das escolas mais prestigiadas do mundo, que recebe apenas 12 alunos por ano.
Grandes mestres da perfumaria contemporânea têm o DNA de Grasse:
• Edmond Roudnitska: O criador do Eau Sauvage (Dior) viveu e trabalhou na região (em Cabris), defendendo a perfumaria como arte minimalista.
• Jean-Claude Ellena: Ex-perfumista da Hermès e nascido em Grasse, filho de perfumista. Ele costuma dizer que “o cheiro de Grasse é o cheiro do trabalho”, referindo-se aos vapores das fábricas de extração que permeavam sua infância.
• François Demachy: Criador de sucessos da Dior, que também passou a infância nos campos de jasmim da cidade.
Hoje, Grasse não vive apenas de museus. A cidade abriga fábricas de gigantes da matéria-prima como Robertet e IFF (Laboratoire Monique Rémy), que processam ingredientes naturais para o mundo todo.
De Catarina de Médici aos laboratórios de alta tecnologia, Grasse permanece insubstituível. Como dizem os locais: em qualquer lugar do mundo se faz perfume, mas a alma do perfume mora em Grasse.


