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Memórias de um saxofonista

Thiago Sievers Head de Parcerias

Embora a carreira de músico não seja reconhecida como deveria, ser um profissional de qualidade nesse ramo pode render experiências inesquecíveis. Ubaldo Versolato, 54 anos, é musico há 33 e um dos grandes nomes do saxofone no Brasil. Começou a mexer com o instrumento aos 10 anos de idade na sua cidade natal, São Bernardo do Campo, onde ouviu uma vizinha dizer para sua mãe: “Seu filho não trabalha, só toca?”. Sobre isso Ubaldo diz: “O músico até hoje sofre esse preconceito. Eu mesmo, quando perguntavam a minha profissão, dizia que era músico profissional. Foi a minha mulher Flávia que me convenceu a dizer que eu era somente músico, sem precisar ressaltar o profissional”.

Certa vez Ubaldo foi convidado para tocar na inauguração do Instituto Fernando Henrique Cardoso em duo com um amigo que levava um baixo acústico. Ele nem sabia quem passaria pelo evento, mas quando começou a ver chefes de estado de vários países, presidentes, embaixadores entrando no saguão se deu conta do tamanho do acontecimento. “De repente toda movimentação parou”, diz. “Não se viu mais ninguém e o saguão ficou vazio. Não entendi nada do que estava acontecendo.” Quando começou a tocar Garota de Ipanema, o saxofonista enxergou entrando do outro lado do recinto o ex-presidente americano Bill Clinton. “Ele veio andando em nossa direção. O salão havia sido esvaziado e curiosamente só nos dois, os músicos, havíamos permanecido por ali. Ele parou por um instante, ouviu a música, nos cumprimentou com um ‘how are you?’ e nos deu a mão. Foi muito inusitado e realmente nos surpreendeu”.

Entre os artistas que Ubaldo acompanhou em sua carreira há nomes como Cauby Peixoto, Raul Seixas e Wanderléa. Atualmente, ele toca com Roberto Carlos. Quando pergunto qual foi o mais maluco dentre eles, Ubaldo é categórico: “Raul Seixas. Artista maluco igual ao Raul acho que eu não conheci. Até brincava que uma nuvem negra com raios, morcegos e dragões nos acompanhava quando havia algum show. Sempre acontecia algo errado”. Naturalmente eu peço para ele me contar alguma história onde “algo dera errado”.

“Eu estive no palco com o Raul no fatídico episódio do show em Caieiras e posso dizer que fui testemunha ocular dessa história”, diz. “O que aconteceu é que o publico começou a desconfiar que o Raul não era o Raul. Não sei exatamente o que fez o público duvidar da identidade dele, há muitas especulações. Mas desde que começamos o show o clima já estava hostil, o que era de se estranhar porque o público sempre o idolatrou como um herói mesmo. Imagine essa energia vindo em sentido contrário, o público se vendo traído por um impostor, traindo o seu grande ídolo! Era isso que eles acreditavam.

“Não sei quantos minutos conseguimos tocar até acontecer a chuva de latas de cerveja e cuspidas no palco”, continua Ubaldo. “Uma hora a situação estava incontrolável e decidimos: ‘Vamos sair fora daqui’. Resultado: fomos todos para a delegacia e, para atrapalhar, o Raul estava sem documento nenhum. Foi bem rock’n’roll”.

Ubaldo ainda relatou que o pessoal da banda ficou detido no estacionamento da delegacia dentro do ônibus por umas quatro horas. Bom, ao menos ele tinha o consolo do pagamento, que para um músico acompanhante de Raul Seixas não deveria ser pouco, certo? Errado. “Cheguei em casa pela manhã e com o bolso vazio – por conta de toda a confusão acabei nem recebendo o cachê. Mas pelo menos fiz parte de uma boa história e isso não tem preço, não é? [rs].”

Não tem como falar de Raul sem falar de bebida, então Ubaldo relembra de um show que aconteceu no Clube Hebraica. “Nesse show tocaram várias bandas como Kid Vinil e outras da década de 80, onde a atração principal no final era o Raul”, diz. “A hora foi passando, as bandas foram tocando e ele não chegava. Quando a última banda acabou de tocar o Raul ainda não tinha chegado e começou o mal estar, aquele alvoroço. Foi quando finalmente ele chegou numa ambulância em coma alcoólico, semi-morto. Quando anunciaram que não haveria show começou o quebra-quebra geral. Eu fugi sorrateiramente o mais rápido possível”.

Como o saxofonista estava gostando de falar sobre o maior roqueiro brasileiro da década de 80, eu pergunto se há mais alguma história interessante do Raul. Ele se lembra então de um festival na Fazenda Águas Claras, na cidade de Iacanga, onde a falta de estrutura superava até os padrões do maluco beleza. Ubaldo, Raul, Wanderléa e toda a equipe técnica passaram a noite embaixo do palco com pouca comida, frio, e bebendo vinho numa embalagem longa vida do patrocinador. (Pode parecer trash, mas aposto que é o sonho de muito jovem rockeiro). Às quatro da manhã Raul entrou no palco já alterado cantando com sua voz cambaleante característica. Depois do trabalho, o perrengue ao ir embora carregando os equipamentos no meio da lama sem ajuda de ninguém da produção (mas na mesma companhia dos artistas) valeu a pena ao observar o inusitado helicóptero que apareceu para pegar Raul. “Parecia cena de Vietnã”, diz.

Cauby Peixoto também foi um grande artista que Ubaldo teve a oportunidade de trabalhar – e pode-se dizer que foi uma honra: “Para mim o melhor cantor, crooner e intérprete de todos os tempos da história da música popular brasileira”. Antes dos shows o saxofonista tinha mania de ficar imitando o Cauby pelos camarins, e seus colegas de trabalho não tiveram dúvidas em fazer com que o fato chegasse aos ouvidos do professor (como Cauby é conhecido no meio artístico). Ele se mostrou tão interessado pelos rumores que pediu pessoalmente para que Ubaldo fizesse a representação ali, na sua frente. O músico fez, naturalmente. “Quando eu terminei de cantar ele riu e disse: ‘Que belo vibrato!’.” Depois desse acontecimento Ubaldo passou a tomar o lugar de Cauby nas passagens de som e servir como voz referência para que os técnicos pudessem equalizar o microfone do cantor.

“Mas acontece que ele me surpreendeu durante um show importante que fizemos no Rio de Janeiro na presença de personalidades como Bibi Ferreira e Diogo Vilela [que fez um musical sobre o Cauby]. No meio do show ele me apresenta e diz, ‘Ubaldo, imita Cauby’. Rolou aquele silêncio de apreensão, os meus colegas começaram a dar risada e ao mesmo tempo todos estavam esperando uma reação minha. Então eu falei: ‘Cauby, já que estamos na Cidade Maravilhosa, acho que você deveria cantar’, e cantei Copacabana com a minha melhor voz de Cauby”. No fim o público aplaudiu e reconheceu a ousadia do músico.