Cultura Olfativa

Os Farinas: a família que revolucionou (e polemizou) a perfumaria

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A saga dos Farinas é daquelas histórias em que um sobrenome vira sinônimo de um produto — e, justamente por isso, acaba no centro de disputas, confusões jurídicas e estratégias comerciais engenhosas.

Entre Colônia e Paris, a família ajudou a transformar uma poção aromática em um item de higiene, luxo e identidade cultural muito antes de “marca” significar o que significa hoje.

Giovanni Maria Farina inaugura o mito fundador. Depois, entram em cena dois personagens que tensionam esse legado: Carlo Farina, ligado a uma tentativa irregular de vender o nome, e Jean Marie Farina, responsável por um ramo francês que seria vendido anos depois de forma legal, embora não fosse herdeiro direto da casa original de Colônia.

Giovanni e o frescor moderno do século XVIII

Giovanni Maria Farina (que se apresentava como Johann Maria Farina em alemão e Jean Marie Farina em francês, para facilitar a pronúncia das pessoas) se estabeleceu em Colônia no início do século XVIII e cria algo radical para a época: uma fragrância leve, cítrica e transparente, muito distante dos perfumes densos, animálicos e quase medicinais que dominavam a Europa. A proposta era transmitir a sensação de limpeza e ar fresco, como um banho invisível.

A base alcoólica mais pura, combinada com óleos cítricos — especialmente a bergamota —, dava à fragrância um brilho inédito. Giovanni descrevia sua criação como a lembrança de uma manhã italiana após a chuva, uma imagem sensorial que ajudava a vender o perfume antes mesmo de o conceito existir. O sucesso foi imediato. A água de Colônia passou a circular entre aristocratas, comerciantes e militares, sendo usada no corpo, nos lenços e até como refresco aromático para ambientes.

Nascimento da água de Colônia como conceito

Mais do que uma fórmula, Giovanni Farina criou um padrão. A água de Colônia passa a representar uma ideia de frescor diário, algo reaplicável, socialmente aceito e elegante, em contraste com os perfumes cerimoniais usados apenas em ocasiões específicas.

Esse novo uso ampliou o mercado e fez o nome Farina ganhar peso simbólico. O sobrenome deixou de identificar apenas uma família e passou a carregar uma promessa olfativa.

Esse prestígio, naturalmente, despertou interesse externo. Quando o nome vira sinônimo de qualidade, ele se torna desejado — mesmo por quem não tem direito a ele.

Golpe do sobrenome: Carlo e a venda ilegal

Quase cem anos depois da criação original, surge um episódio controverso. Em 1803, um homem chamado Carlo Farina — sem ligação direta com a família de Giovanni — concede a um comerciante alemão o direito de usar o nome Farina para vender água de Colônia.

Na prática, tratava-se de uma tentativa de legitimar um produto usando um sobrenome prestigiado, sem ligação com a casa Farina original de Colônia. A confusão foi grande, o público foi induzido ao erro e disputas começaram a se acumular.

Com o tempo, o uso do nome Farina foi contestado, e o negócio passou a se identificar pelo número do endereço: 4711. O que começou como solução improvisada acabou criando uma das marcas mais famosas da história da perfumaria.

Dois Farinas, duas cidades, dois caminhos

Enquanto a casa Farina original reforçava sua identidade como “original desde 1709”, Paris se tornava palco de um novo capítulo. Em 1806, Jean Marie Farina se estabelece na capital francesa e funda sua própria casa de perfumaria.

Jean Marie pertencia a um ramo distante da família, mas não era herdeiro direto da empresa de Colônia. Ainda assim, seu nome ajudava a criar associação imediata com a tradição da água de Colônia. Afinal, o próprio inventor da fragrância, apesar de ter sido batizado em italiano como Giovanni Maria, às vezes usava o nome equivalente em francês Jean Marie (ou o alemão Johann Maria) dependendo do país de onde estivesse.

Em Paris, a fragrância ganha contornos mais refinados, alinhados ao gosto francês, e passa a ocupar um espaço menos medicinal e mais ligado ao luxo e ao estilo.

Diferentemente do episódio envolvendo Carlo, o caso de Jean Marie Farina segue um caminho formal. Após décadas de atividade, o negócio parisiense é vendido legalmente, em 1862, para a Roger & Gallet.

A aquisição inclui a fórmula e o direito de comercializar a água de Colônia Jean Marie Farina Extra Vieille. A partir daí, a fragrância passa a integrar um catálogo mais amplo, com distribuição internacional e padrão industrial.

Esse movimento consolida a divisão histórica: de um lado, a casa Farina de Colônia, guardiã do “original”; do outro, o ramo francês eternizado sob a chancela da Roger & Gallet.

Um legado feito de inovação, vaidade e disputa

A história dos Farinas mostra que a perfumaria moderna nasce tanto da criatividade quanto do conflito. Fórmulas importam, mas nomes, reputação e circulação são decisivos. A água de Colônia inaugura a ideia de perfume cotidiano, fresco e funcional, algo que atravessa séculos e ainda hoje influencia o mercado. Entre contratos duvidosos, vendas legítimas e um número pintado na fachada, os Farinas provaram que tradição raramente é linear — e que, às vezes, um perfume carrega mais história do que se imagina.

Pedro Nogueira

Fundador e editor-chefe do "El Hombre" e do "Moda Masculina".