As famílias olfativas surgiram como uma necessidade prática e intelectual da perfumaria. À medida que o número de matérias-primas, acordes e fragrâncias cresceu, tornou-se impossível falar de perfumes apenas de forma subjetiva. Classificar aromas passou a ser uma forma de criar linguagem comum entre perfumistas, técnicos, avaliadores e clientes.
No entanto, desde a origem, essas classificações nunca foram consensuais. Diferentemente de sistemas científicos rígidos, como a taxonomia biológica, a perfumaria lida com percepção humana, cultura e contexto histórico. Por isso, as famílias olfativas devem ser entendidas como modelos interpretativos, não como verdades absolutas.
Essa é a razão pela qual diferentes especialistas, instituições e autores defendem números distintos de famílias, bem como subdivisões específicas. Cada sistema reflete uma forma particular de enxergar o perfume: mais técnica, mais comercial, mais histórica ou mais sensorial.
A tradição das 7 famílias francesas
A perfumaria francesa tradicional consolidou, ao longo do século XX, um modelo mais detalhado de classificação, geralmente atribuindo sete grandes famílias olfativas, cada uma com identidade própria e lógica estrutural bem definida. Essa abordagem tem forte base histórica e reflete o desenvolvimento da perfumaria fina europeia, especialmente entre o final do século XIX e meados do século XX.
Nesse sistema clássico, estabelecidas pela SFP (Société Française des Parfumeurs), as famílias são organizadas da seguinte forma:
- Cítrica (hesperídea)
- Floral
- Fougère
- Chipre
- Amadeirada
- Oriental (ambarada)
- Couro
Embora essas 7 linhagens principais funcionem como a espinha dorsal da perfumaria, o sistema da SFP prevê uma organização em subfamílias que reflete a complexidade das criações contemporâneas.
Essas variações permitem que as famílias se entrelacem, criando nuances onde, por exemplo, um Cítrico Amadeirado mantém um frescor volátil enquanto ganha longevidade e caráter através de notas de fundo mais densas.
Essa hibridização não descaracteriza a família principal, mas a enriquece, permitindo que o perfumista explore facetas específicas — como toques frutados, especiados ou florais — dentro de uma estrutura técnica já consagrada.
Cada uma dessas categorias representa mais do que um conjunto de notas dominantes. O chipre, por exemplo, possui uma construção olfativa própria, marcada pelo contraste entre frescor cítrico e profundidade musgosa. O fougère, por sua vez, define uma arquitetura aromática específica, e não uma matéria-prima isolada.
Essa visão valoriza a estrutura do perfume, sua evolução e seu equilíbrio interno, em vez de se limitar à leitura imediata das notas. Por isso, esse modelo ainda é amplamente utilizado na formação de perfumistas, na crítica especializada e na análise histórica de fragrâncias clássicas.
A roda das fragrâncias de Michael Edwards

Uma das interpretações mais influentes da perfumaria contemporânea é a proposta pelo especialista britânico Michael Edwards. Diferente do modelo linear, ele organiza as fragrâncias em uma Roda Olfativa, na qual as categorias se conectam de forma gradual.
O grande mérito dessa abordagem é organizar a complexidade do mercado em quatro grandes grupos olfativos, que servem como eixos para as 14 sub-famílias da roda:
- Floral
- Ambarado (Oriental)
- Amadeirado
- Fresco
Essa disposição circular reconhece que muitos perfumes não pertencem exclusivamente a uma única “caixa”. Ao longo da evaporação, uma fragrância pode transitar entre esses territórios, revelando nuances que classificações rígidas não conseguem representar.
Por ser baseada na percepção sensorial e na semelhança entre notas vizinhas, a Roda de Edwards tornou-se uma das principais ferramenta para o varejo global e para ajudar consumidores a descobrirem novas preferências.
A árvore olfativa de Renata Ashcar

Além dos modelos europeus, a perfumaria brasileira também desenvolveu sua própria forma de organizar o universo dos aromas. A árvore olfativa criada por Renata Ashcar propõe uma leitura clara e estruturada das famílias olfativas, pensada tanto para o estudo técnico quanto para a compreensão sensorial do perfume.
Diferente de sistemas circulares ou lineares, a árvore organiza as famílias de maneira hierárquica e visual, facilitando a identificação das grandes categorias e de suas relações. A proposta não busca substituir modelos clássicos, mas oferecer uma ferramenta didática que traduza a complexidade da perfumaria de forma acessível e coerente.
Na árvore olfativa de Renata Ashcar, as fragrâncias são organizadas em 6 grandes famílias principais:
-
Cítrica
-
Aromática
-
Floral
-
Chipre
-
Amadeirada
-
Oriental
A principal diferença entre a árvore olfativa de Renata Ashcar e o modelo clássico da SFP está no recorte das famílias consideradas centrais.
Enquanto a SFP trabalha com sete famílias — incluindo fougère e couro como categorias autônomas —, a árvore de Ashcar opta por enxugar o sistema para seis grandes famílias, incorporando o fougère dentro do território aromático e tratando o couro não como família independente, mas como efeito ou faceta olfativa geralmente associada a estruturas amadeiradas ou orientais.
Com isso, o modelo brasileiro prioriza a leitura sensorial, reduzindo categorias muito específicas e concentrando-se em famílias mais amplas, sem romper com a lógica estrutural da perfumaria clássica.
Qual é a importância das famílias olfativas?
Diante dessas diferentes abordagens, fica claro que as famílias olfativas não devem ser encaradas como compartimentos rígidos, mas como ferramentas de leitura. Cada sistema organiza o perfume a partir de um critério específico, seja histórico, estrutural ou perceptivo.
Enquanto a escola francesa privilegia a arquitetura clássica das fragrâncias, com famílias bem definidas e heranças técnicas claras, a proposta de Edwards responde a uma necessidade contemporânea de visualização e comparação, aproximando perfumes por afinidade sensorial. Nenhuma dessas leituras anula a outra; elas se complementam.
No fim, compreender as famílias olfativas é compreender como a perfumaria se organiza para falar de algo essencialmente subjetivo. Elas não existem para limitar a criação, mas para oferecer linguagem, contexto e repertório — tanto para quem cria quanto para quem escolhe um perfume.


