fbpx
Legenda

Memórias de um dealer de high stakes

Pedro Nogueira Editor-Chefe

É uma da manhã e o jogo de pôquer, num apartamento com vista para a ponte estaiada da Marginal Pinheiros, estourou. Os parceiros – metade deles passando cheque e a outra metade os recebendo – estão se preparando para ir embora. E, na mesa, sobra apenas um dealer que, no circuito, é conhecido pelos jogadores como Alemão, mas que nasceu em São Paulo, 58 anos atrás, simplesmente como José Reinaldo de Morais. Quando o assunto é distribuir cartas, Alemão é provavelmente a maior autoridade do país. Depois de uma noite desastrosa de Omaha para mim, com quase três cacifes no buraco, sento-me ao lado dele e começo a ouvir as suas histórias.

“Mexo com jogo há mais de 30 anos”, ele diz, com sua voz grave. “Antigamente era bacará, roleta e blackjack. Mas desde 2003 ou 2004, o meu negócio é o pôquer.” Alemão conta que, desde que foi chamado sete anos atrás para treinar os profissionais do H2 Club, então localizado na Rua Mariana Corrêia, em São Paulo, preparou pelo menos 500 pessoas para a profissão. Mais do que um crupiê, Alemão é um professor da arte. “Quando alguém queria abrir um clube em Porto Alegre ou em Goiânia, por exemplo, me ligavam e eu ficava lá 15 dias treinando o pessoal. Já fiz assessoria para mais de 40 casas no Brasil. Tirando o Paradise, que foi o primeiro clube de Texas Hold’em do país, trabalhei com todo o resto.”

Alemão me diz que, hoje, já não está mais no pique de antes. “Hoje tenho dois ou três eventos fixos por semana e dou aula num clube na Vila Madalena”, diz. “Também pego uns freelas de vez em quando. Antes, eu tinha agenda fechado por três meses. Viajava o tempo inteiro para abrir clubes. Mas agora, com meus filhos todos grandes e formados, não preciso mais trabalhar tanto. Fiz uma poupança boa nesses anos todos. Apartamento bacana, três carrinhos na garagem. Não posso me queixar, né?”

Pergunto a ele o pote mais marcante de sua carreira. “Vou te contar uma história que aconteceu no Ômega”, ele responde. “Dei um par de damas, um de reis e um de ases no cash game caro. Bala, bala, bala, é claro. Só que lá no Ômega, não tinha esse negócio de all in. Se o jogador quisesse, podia pegar mais ficha no meio da jogada. Daí abro no flop QKA, todo mundo trincou. Bala, bala, bala. No turn eu viro um dez e, no river, mais um dama. Então tá um parceiro com full de reis, outro com full de ás e um quadrado de damas. Bom, foi uma baleada só e o pote acabou dando 86 mil reais.”

Se esse foi o maior pote que ele presenciou? Longe disso, por um dígito de distância. “O maior aconteceu num jogo particular em Alphaville, cheio de empresários”, Alemão diz. “Era Omaha capado, do sete para cima, com blinds de R$500/R$1000. O anfitrião do jogo, rico para burro, era a estrela do jogo. Metia bala sem ver as cartas. Aí um jogador fez Royal Straight Flush e ele continuou metendo ficha. Essa parada deu 960 mil reais. Nesse pote ganhei minha maior caixinha, de 5 mil reais. Um detalhe curioso desse jogo é que, a cada mão, eu tinha que abrir um baralho novo, porque o cara tinha medo de trambique. Bom, eu que não ia discutir, né?”

Alemão conta para mim que, como qualquer jogo, o pôquer também tem os seus malandros. “No All In Tatuapé, presenciei um negócio inédito”, ele diz. “Numa parada alta, um cara fez um full house com um ás de paus na mão e outro ás de paus na mesa. Bom, é claro que deu confusão. Como tinha câmera no clube, fui checar o vídeo e vi o cara tirando carta do bolso. Depois disso, ele nunca mais apareceu por lá”, diz.

“Teve outra história parecida no Ômega, num jogo caríssimo”, Alemão diz. “Um parceiro saiu da mesa e foi ao toalete. Quando voltou, percebeu que estavam faltando duas fichas de mil reais. A dealer perguntou se alguém tinha feito uma brincadeira e, como ninguém se manifestou, me chamaram. Bom, fui até o escritório checar o vídeo. Congelei a imagem no exato momento em que a mão de um jogador está mexendo nas fichas. Levei o cara até a sala e mostrei o vídeo. Ele me disse ‘Pô, Alemão, eu tava brincando.’ Para cima de mim? Fechei a conta dele e avisei que, em qualquer clube eu gerenciasse, ele nunca mais jogaria. Mas não o queimei na frente da mesa.”

Olho o relógio e são mais de duas da manhã. Depois de uma noite inteira apanhando do baralho, foi bom ouvir as histórias do Alemão para me distrair. Além das narradas acima, ele me contou ainda outras. Como, por exemplo, a vez em que treinou 423 dealers simultaneamente em Gramado para um torneio que acabou não acontecendo. “Até hoje o organizador do evento me deve 120 mil reais”, ele diz. “Puta 171.” A conversa está tão boa que quase me esqueço do buraco de três cacifes em que me meti. Mas não adianta adiar o sofrimento: despeço-me do Alemão e, dolorosamente, busco em meu bolso um maço de notas que nunca mais verei na vida. A não ser, é claro, que as cartas – e meu entrevistado – sejam mais gentis comigo na semana que vem.