O outro lado de Berlim

Compartilhe

Certas coisas, numa viagem, você faz num último e inexplicável impulso, em geral já correndo contra o relógio, e muitas vezes é ali que você vai encontrar o melhor momento dos dias que passou num determinado local. Aconteceu comigo em Berlim, para onde fui no final de outubro de 2009 para escrever uma reportagem sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim.

Minha mala já estava pronta na manhã da segunda-feira no bom hotel em que fiquei, o California, muito bem localizado na Kurfürstendamm, uma avenida no centro da cidade. Minha bagagem de mão, sempre pesada pelos livros que levo, uma orgia de letras exagerada mas da qual não consigo me livrar, também já estava preparada, uma mochila azul do Evening Standard cujo zíper eu até já fechara. Eram umas 10 horas e o avião para Londres sairia pouco depois das 15 de Schoenefeld, o aeroporto de Berlim utilizado pela Ryanair, a companhia europeia barateira que disputa com a EasyJet o mercado de quem não pode gastar muito.

Fiz uma conta mental mas meticulosa e decidi ir para o outro lado da cidade, no que foi Berlim Oriental entre 1945 e 1989, rumo ao Museu da Stasi, a polícia secreta do governo comunista. Uns 40 minutos para ir, outros 40 para voltar, mais uma hora de visita. Ficaria apertado, mas daria. Pedi ao motorista de táxi que me esperasse, para ganhar um tempo que era escasso. O museu fica no que foi a sede da Stasi, que se declarava “o escudo e a espada” do partido no poder. É um prédio sombrio, soturno, triste, inteiramente preservado para que as pessoas possam ver sossegadamente, pagando três euros, o local em que os habitantes do pedaço oriental da cidade foram obsessivamente vigiados e, em muitos casos, submetidos a torturas pretensamente científicas. A Stasi é retratada muito bem em A Vida dos Outros, um filme que revi em Londres depois de ir ao museu. (Veja o trailer abaixo.) Não gosto de final melodramático, em que a mulher mesmo atropelada tem lucidez para dizer com clareza as últimas palavras, mas é um filme que mostra o que “o escudo e a espada” do partido fizeram contra o povo emparedado pelo muro.

No documentário, vi a ânsia com que a multidão, tão logo liquidado o muro na noite de 9 de novembro de 1989, se precipitou para a sede da Stasi, prudentemente esvaziada naquele momento. Quem pudera tudo já não podia nada senão escapar. Os alemães são ordeiros. Primeiro bateram na porta de vidro e, como ninguém estava lá para abrir, forçaram. Estava trancada, e então alguém quebrou o vidro, e a primeira visitação pública foi feita em circunstâncias inesperadas. Alguns meses depois, reunificada a Alemanha, a Stasi foi oficialmente extinta, mas “o escudo e a espada” àquela altura já estavam pendurados para a eternidade. Atarracado, sem pescoço como o primeiro general da ditadura militar brasileira, Castelo Branco, Erich Mielke, o temido e abominado chefe da Stasi desde 1957, ficou preso por algum tempo, foi libertado por razões de saúde e morreu em 2000 aos 92 anos. Seus restos estão enterrados numa cova anônima em Zentralfriedhof Friedrichsfelde, um conhecido cemitério de Berlim onde jazem muitos comunistas célebres alemães.

“Ele era certamente o homem mais temido do país”, escreveu Anna Funder no livro A Terra da Stasi — Histórias Por Trás do Muro de Berlim. “Temido pelos colegas, temido pelos membros do Partido, temido pelos trabalhadores e pela população em geral.” Funder conta que, numa reunião de trabalho em 1982, Mielke afirmou que nem a Stasi estava livre de traidores. “Se eu descobrisse um, no dia seguinte ele estaria morto. Porque sou um humanista é que penso assim.” Sobre as discussões em torno da pena de morte, ele disse: “Bobagem, camaradas. Executem. E, quando necessário, sem julgamento.” Na sala de Mielke, mantida tal como era, há uma máscara mortuária de Lênin, o chefe da Revolução Russa de 1917. Lênin e Stálin eram os heróis de Mielke. “Quem não está conosco está contra nós”, costumava dizer ele. “Quem está contra nós é nosso inimigo e nossos inimigos têm que ser eliminados.” Quando o poder de vida e morte enfim escapou de suas mãos, Mielke não foi eliminado por seus inimigos. Seus últimos anos foram passados num asilo para velhos.

A Stasi montou um aparato espantoso e caríssimo para patrulhar o povo, como se pode ver em A Vida dos Outros. Eram 85 000 funcionários e mais 170 000 informantes, o que dava uma proporção sem precedentes de espiões por pessoa num país de pouco mais de 17 milhões de habitantes. Num determinado momento, cada prédio público da Alemanha Oriental tinha pelo menos um informante. Nos escritórios de correio, havia sempre alguém para abrir e ler todas as cartas. Julia, uma alemã oriental que cedo foi punida e tratada como suspeita na terra em que vivia compulsoriamente, contou a Funder que uma vez, chamada para uma conversa por uma autoridade, foi colocada diante da revelação chocante de que todas as cartas que ela trocara com um namorado italiano tinham sido lidas. As palavras não entendidas pelos espiões, aquelas que fazem parte do código único de namorados, foram naquele dia submetidas a Julia. “O que é Cocoriza?”, perguntou o homem a Julia. É milho, em húngaro, e era como o namorado chamava Julia. O interrogador se achou no direito de dar conselhos amorosos a Julia. Anos antes, quase menina ainda, ela fora interrogada com o método mais empregado pela Stasi: a interrupção do sono por quanto tempo fosse preciso.

Visto em retrospectiva, chama a atenção o fracasso da lavagem cerebral tentada pelos dirigentes comunistas. Crianças, desde o jardim de infância, recebiam lições em que o comunismo era apresentado como o paraíso na terra e o capitalismo, demonizado. Entrevistada num documentário feito nos anos 50, uma moradora de Berlim Oriental que conseguiu escapar para o outro lado com seu filho e seu marido disse que a razão principal era a doutrinação da criança. Tanta doutrinação pôde pouco contra a realidade agastante dos fatos. Quando o muro foi erguido, mais de 2 milhões de alemães orientais já tinham ido para o outro lado, quase sempre deixando para trás casa e emprego. Era uma época realmente confusa. Havia, nos meses anteriores ao muro, um medo globalizado de que União Soviética e Estados Unidos passassem da Guerra Fria, em que um rosnava para o outro e exibia músculos, para um confronto nuclear capaz de aniquilar a humanidade.

Toda a engrenagem montada e mantida para dar sustentação ao regime comunista tinha um custo que mais tarde seria cobrado. Quem viu A Vida dos Outros lembra que um teatrólogo sem nenhum perigo era vigiado 24 horas num esquema de revezamento incessante. Alguém tinha que pagar os salários, e mais as despesas decorrentes dos aparelhos usados etc. A pobreza do povo, em comparação ao dinamismo do outro lado, se originava, em parte, do custo da opressão. Você tem uma ideia clara do contraste em outro museu, o da História de Berlim, em que uma sala típica de classe média da Alemanha Oriental é reconstruída ao lado de outra sala típica de classe média da Alemanha Ocidental. Na primeira, limpa e organizada com é típico dos alemães, não há telefone, e a televisão é em branco e preto. Na segunda, as imagens são coloridas, e o telefone está presente, o clássico modelo negro.

Foi exatamente por questões de custo que o muro caiu. Em 1989, o primeiro-ministro da Hungria, Miklos Nemeth, foi examinar o orçamento em busca de cortes. Ele encontrou uma despesa considerável e foi investigar o que era. Era o dinheiro para manter o arame farpado na fronteira que a Hungria, então sob domínio soviético, fazia com a Áustria. Estimulado pela pregação renovadora de Mikhail Gorbachev, o novo líder soviético, Nemeth mandou cortar essa despesa. Pela Hungria, os alemães orientais podiam escapar da gaiola em que foram metidos. O itinerário era Hungria-Áustria-Alemanha Ocidental.

Você desfruta o melhor de Berlim na parte ocidental: museus, restaurantes, zoológico, aquário, casas noturnas, lojas caras cujas vitrinas estão nas calçadas. Mas sem ir ao Museu da Stasi na sofrida área oriental, um prédio bege em que a atmosfera opressora é dada pelos retratos e bustos carrancudos de personalidades como Lênin, Stálin e Marx, sua viagem será menos rica.

Paulo Nogueira

Paulo Nogueira (1956-2017) é o pai de Pedro Nogueira, editor-chefe do El Hombre. "Ele foi meu herói", diz Pedro. "E continua sendo." Ao longo da carreira, dirigiu várias revistas da Abril e da Globo. Também escreveu artigos para o El Hombre que, frequentemente, reeditamos e republicamos no site.

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.

Saiba Mais