Atitude

Ser excluído ou rejeitado pode ser um privilégio? Segundo Hannah Arendt, sim

Compartilhe

O seguinte texto, que gira em torno da escritora cientista política Hannah Arendt e humanitarianismo que pode nascer do ato de ser excluído ou rejeitado foi publicado originalmente no site The Marginalian, e é da autoria de Maria Popova. Caso seja fluente em inglês e deseje ler o texto original, ele se encontra aqui.

“O único propósito da existência humana é acender uma luz na escuridão do mero ser,” escreveu Jung ao contemplar a vida e a morte. E a parte mais surpreendente de tudo isso é o quão inventivos podemos ser ao acender essa chama, até mesmo em meio às circunstâncias mais dolorosas e sufocantes — um tipo de instinto de sobrevivência espiritual cuja beleza vitalizante somente os oprimidos, os marginalizados e aqueles banidos da sociedade mainstream têm o doloroso privilégio de conhecer.

Esse privilégio agridoce é o que a grande escritora e teórica política alemã Hannah Arendt (1906 – 1975) explora em “Homens em Tempos Sombrios“, uma coletânea de ensaios de 1968 que se tornou ainda mais pertinente e luminosa nesse meio século desde sua publicação. (O título do livro, vale ressaltar com uma mistura de lamentação e deleite, provém de uma era em que uma grande mulher era um “ele” — um paradoxo do qual a própria Hannah Arendt, uma das maiores mentes do século XX e a primeira mulher a ministrar as prestigiadas Palestras Gifford, era o epítome.)

Uma geração após Viktor Frankl redigir seu tratado atemporal sobre como as circunstâncias mais obscuras iluminam a busca humana por significado, Arendt escreve:

Mesmo nos tempos mais sombrios, nós temos o direito de esperar alguma iluminação, e a iluminação pode vir menos de teorias e conceitos do que da incerta, cintilante e frequentemente fraca luz que alguns homens e mulheres, em suas vidas e obras, acendem sob quase todas as circunstâncias e projetam sobre o período que lhes foi concedido na Terra… Olhos tão acostumados à escuridão como os nossos dificilmente poderão dizer se sua luz era a luz de uma vela ou a de um sol resplandecente. Mas tal avaliação objetiva parece-me uma questão de importância secundária que pode ser tranquilamente deixada para a posteridade.

Do nosso ponto de vista atual, uma coisa é certa — suas próprias ideias sobre liberdade, justiça e natureza humana são mais radiantes do que nunca. Meio século antes da lúcida e luminosa defesa de Rebecca Solnit pela esperança mesmo nos tempos mais difíceis, Arendt escreve:

O mundo jaz entre as pessoas, e este intermediário […] é hoje objeto da maior preocupação e mais evidente transtorno em quase todos os países do globo.

Arendt argumenta que em tempos sombrios — tempos de injustiça, quando certos grupos são oprimidos por outros e a liberdade pessoal está em risco — algo mágico acontece a esse espaço intermediário; “um tipo especial de humanidade se desenvolve”, uma intensa comunhão entre e entre os oprimidos. Mais de um século após Kierkegaard contemplar o poder das minorias, ela escreve:

A humanidade se manifesta nessa fraternidade mais frequentemente em “tempos sombrios”. Essa espécie de humanidade se torna inevitável quando os tempos se tornam extremamente sombrios para alguns grupos de pessoas, de modo que já não lhes cabe, através de sua perspicácia ou escolha, simplesmente retirar-se do mundo. A humanidade, na forma de fraternidade, aparece historicamente entre os povos perseguidos e os grupos escravizados [nota da tradutora: publicaremos em breve um texto sobre Spartacus que é a ilustração perfeita de um desses momentos]. Esse tipo de humanidade é o grande privilégio dos povos excluídos; é a vantagem que os párias deste mundo sempre e em todas as circunstâncias podem ter sobre os demais.

A própria Arendt, além de ser uma intelectual feminina em um domínio quase inteiramente masculino, pertence a uma população completamente excluída e perseguida — o grupo de judeus expulsos da Alemanha por Hitler ainda jovens — e é a partir deste ponto de encontro entre o pessoal e o político que ela adiciona:

O privilégio é caro; muitas vezes é acompanhado por uma perda tão radical do mundo, e por uma atrofia tão temível de todos os órgãos com os quais respondemos a ele — começando pelo senso comum com o qual nos orientamos em um mundo comum a nós e aos outros, e avançando para o senso de beleza, ou gosto, com o qual amamos o mundo — que em casos extremos, nos quais o estigma persistiu por séculos, podemos falar de uma verdadeira desvinculação do mundo.

Mas desta situação, Arendt observa, nasce algo diferente — um novo tipo de humanitarismo fraterno, que não pode ser replicado ou fabricado em quaisquer outras circunstâncias:

É como se, sob a pressão da perseguição, os perseguidos se aproximassem tanto que o espaço intermediário que chamamos de “mundo” (e que, claro, existia entre eles antes da perseguição, mantendo-os distantes uns dos outros) simplesmente desaparecesse. Isso produz um calor nas relações humanas que é capaz de gerar uma amabilidade e a mais pura bondade das quais os seres humanos são, de outra forma, quase incapazes. Frequentemente, é também a fonte de uma vitalidade, de uma alegria no simples fato de estar vivo, que sugere que a vida se realiza plenamente apenas entre aqueles que são, em termos mundanos, os insultados e feridos.

Ela também esclarece:

No entanto, este tipo de humanitarismo, cuja forma mais pura é um privilégio do pária, não é algo transmissível e não pode ser facilmente adquirido por aqueles que não pertencem aos párias. Nem a compaixão, nem a verdadeira partilha do sofrimento são suficientes.

Há algo maior e mais expansivo no cerne da questão, argumenta Arendt — “a questão do altruísmo, ou melhor, a questão da abertura aos outros, que de fato é a pré-condição para ‘humanidade’ em todo sentido dessa palavra” — e essa abertura, em sua forma mais elevada, é uma abertura à alegria um do outro, e não apenas ao sofrimento mútuo:

Parece evidente que compartilhar as nossas alegrias é absolutamente superior a compartilhar o sofrimento neste aspecto. A alegria, não a tristeza, é comunicativa. O verdadeiro diálogo humano difere da mera fala ou discurso porque é inteiramente permeado pelo prazer na outra pessoa e no que ela diz. Poderíamos dizer que está sintonizado com a chave da alegria. O que impede essa alegria é a inveja, que, no âmbito da humanidade, é o pior dos vícios.

Esta partilha de alegria, Arendt nota com referência às ideias de Aristóteles sobre amizade, é o cimento das ligações humanas mais poderosas:

Os antigos consideravam os amigos indispensáveis à vida humana, acreditando que uma vida sem amigos não valia realmente a pena ser vivida. Mantendo essa visão, deram pouca consideração à ideia de que precisamos da ajuda de amigos na adversidade; pelo contrário, eles acreditavam que não pode haver felicidade ou boa sorte para alguém a menos que um amigo compartilhe dessa alegria. Claro que há algo de verdade no dito de que só na adversidade descobrimos quem são nossos verdadeiros amigos; mas aqueles que consideramos nossos verdadeiros amigos sem tal prova são geralmente aqueles a quem revelamos sem hesitação a felicidade e de quem esperamos que compartilhem de nossa alegria.

Aí reside o ponto mais relevante e mais belo de Arendt — é neste ato de conexão que criamos o mundo:

O mundo não é humano só porque é feito por seres humanos, e não se torna humano apenas porque a voz humana ressoa nele, mas apenas quando se torna objeto de discurso. Por mais que sejamos afetados pelas coisas do mundo, por mais profundamente que elas possam nos tocar e estimular, elas se tornam humanas para nós apenas quando podemos discuti-las com nossos semelhantes… Humanizamos o que está acontecendo no mundo e em nós mesmos apenas ao falar sobre isso, e no curso de falar sobre isso aprendemos a ser humanos.

Camila Nogueira Nardelli

Leitora ávida, aficcionada por chai latte e por gatos, a socióloga Camila escreve sobre desenvolvimento pessoal aqui no El Hombre.

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.

Saiba Mais