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David Bowie Livros
Ilustração por Alex Fine

Leia como um astro do rock: 3 livros que influenciaram a vida e a carreira de David Bowie

Célebre tanto pelos seus discos e músicas inesquecíveis quanto pelo que John O’Connell, um jornalista musical, definiu como o seu “ar de alteridade etérea”, David Bowie – o maior ícone do glam rock – era um exímio leitor. Inclusive, chegou a listar os 100 livros que influenciaram com maior intensidade a sua vida e carreira, lista esta divulgada pelo museu britânico Victoria & Albert Museum em uma exposição a respeito do cantor.

Embora jamais tenha sido considerado um bom aluno, e tenha inclusive abandonado a escola em 1963, Bowie leu literalmente milhares de livros e cultivou um amplo número de interesses nos anos posteriores, o que sugere, segundo O’Connell, que ele não era “preguiçoso”, e nem “incapaz de reter informações”, mas somente que era um autodidata e que a educação formal não lhe parecia minimamente atraente.

A lista de Bowie, da qual todos podemos nos beneficiar, se encontra na íntegra nesse link. A favor da brevidade, decidimos nos ater nesse texto aos 5 livros que Bowie alegou serem seus favoritos, todos de excelente qualidade e altamente inspiracionais.

(Nota da autora: Digo inspiracionais em termos da qualidade dos pensamentos filosóficos que despertam no leitor, e não que os atos praticados pelos personagens são dignos de emulação ou fontes de inspiração, especialmente no caso do primeiro livro desta lista).

1# LARANJA MECÂNICA, ANTHONY BURGESS

Laranja Mecânica Bowie

Amado por muitos e odiados por outros tantos, Laranja Mecânica teve uma origem trágica, já que foi publicado em 1962, quando Anthony Burgess foi incorretamente diagnosticado com um câncer de cérebro terminal. Desesperado para deixar a esposa, a quem acreditava que em breve deixaria viúva, estável financeiramente, Burgess escreveu cinco livros rapidamente. Um deles, como você já deve ter adivinhado, foi Laranja Mecânica, que levou apenas três semanas para terminar.

E, na realidade, a história por trás do enredo era ainda mais trágica: o ataque sofrido por sua primeira esposa, Lynne, que fora brutalmente violentada por quatro soldados americanos em meio a um apagão, na Segunda Guerra Mundial. Como resultado desse ato brutal, Lynne foi vítima de um aborto espontâneo que a levou a perder o que teria sido o único filho do casal.

Protagonizado pelo jovem delinquente Alex DeLarge, e adaptado aos cinemas pelo talentoso diretor Stanley Kubrick cerca de dez anos depois, Laranja Mecânica se passa no final dos anos 1960, em uma Inglaterra distópica. Com um enredo repleto da “boa e velha ultraviolence”, nós encontramos em Laranja Mecânica todos os tipos de violência possível: violência de gangue e atos impensados se misturam a crimes extremamente graves, como estupros, espancamentos e, em última instância, um homicídio. E, o que constitui para a acadêmica – e especialista em trabalhos de literatura utópicos e distópicos – Pamela Bedore o ponto central da narrativa, o crime do Estado contra o indivíduo: a privação do livre-arbítrio, através da Técnica Ludovico, à qual Alex é submetido na prisão e a qual faz dele incapaz de cometer um só ato de violência.

Teria o Estado o direito de privar um indivíduo de seu livre-arbítrio, em uma manobra mais ou menos fácil que evita que o poder público se ocupe de promover uma legítima reabilitação de seus prisioneiros? E, estando o indivíduo privado de escolha, qual é o seu mérito em não mais ser violento? Como colocaria o capelão da prisão no momento em que Alex está prestes a ser devolvido à sociedade, “ele não mais pode escolher. Interesse próprio, medo de expôr-se à dor física, o levou a esse ato de esquecimento. Há insinceridade nisso. Ele deixou de ser um criminoso. Também deixou de ser uma criatura capaz de escolhas morais”.

Não é difícil compreender o porquê de Bowie ter-se encantado com Laranja Mecânica, sendo este um clássico da contracultura. A estética distópica desse romance o capturou a tal ponto que uma de suas figurinistas favoritas, Milena Canonero, responsável por criar seus figurinos na era Ziggy Stardust, inspirou-se diretamente no uniforme da gangue de Alex. Ademais, ele chegou mesmo a abrir muitos de seus shows com a None Sinfonia de Beethoven, música que marcou tanto o livro quanto o filme Laranja Mecânica. Até mesmo a língua que Burgess criou em sua obra, o Nadsat – que mistura o inglês cockney e o russo –, foi utilizada por Bowie nas músicas Suffragette City e Girl Loves Me.

2# O ESTRANGEIRO, ALBERT CAMUS

O Estrangeiro Bowie

Ao longo dos séculos, as mais diferentes respostas foram oferecidas para a seguinte questão: “Qual é o significado da vida?”. Cada filósofo deu uma resposta – e, entre elas, a resposta de Albert Camus foi a mais sóbria: pra ele, “a vida não significa nada. Ela é absurda”.

Camus, que recebeu o Nobel de Literatura em 1959, foi um dos representantes mais célebres entre os filósofos e literatos existencialistas. Para ele, embora busquemos a ordem e temamos um futuro sobre o qual não temos controle sobre absolutamente nada, procurando entender, explicar logicamente e predizer com precisão tudo o que nos confrontará, o fato é que, apesar de nossos anseios, o mundo em que vivemos é aleatório e irracional.

Mais cedo ou mais tarde, estamos fadados a compreender o quão absurdo é o mundo (e, por consequência, a nossa própria vida). Isso em geral acontece nos momentos nos quais ocorre um colapso relativo à rotina que nos é familiar, como a morte de um parente ou o fim de um relacionamento amoroso. Nesse momento, todos os outros aspectos de nossa vida parecem-nos frágeis e incertos também. Todas as coisas nas quais possuíamos uma confiança implícita tomam uma forma estranha e, bem, absurda.

Em seu ensaio sobre a obra de Camus, e mais especificamente sobre O Estrangeiro, o escritor e jornalista português António Mega Ferreira resume essa questão da seguinte maneira: “O absurdo é a divergência entre o que o homem pede ao mundo – um sentido para a vida – e o que o mundo lhe pode dar – uma vida sem sentido”.

E, quando paramos para pensar, o mundo é realmente caótico, imprevisível e irracional, e as nossas vidas podem ser expostas a uma série de acontecimentos inexplicáveis: doenças mais ou menos súbitas, acidentes, desastres climáticos, oportunidades perdidas ou acatadas. Tudo, simplesmente tudo, contradiz a ordem e a previsibilidade.

Mas falemos sobre o livro em questão. Trata-se, na realidade, de uma novella, isto é, uma obra que se encontra no limiar entre um romance e um conto, ultrapassando o segundo em termos de extensão, sem no entanto igualar-se ao primeiro. Em seu livro Looking for the Stranger, Alice Kaplan, renomada crítica literária, tradutora e historiadora, presidenta do Departamento de Francês da Universidade de Yale, declara que ler O Estrangeiro é um ritual de passagem: “Em todo o mundo, as pessoas relacionam o livro de Camus ao momento em que atingiram a sua maioridade, ao instante em que foram levadas a confrontar-se com questões mais complexas da existência”.

Uma obra curta e rápida, “assente sobre uma escrita despojada e incisiva”, O Estrangeiro inicia-se com a morte da mãe do narrador, Meursault, a qual não provoca nele uma só lágrima. Em apenas alguns capítulos, “excedido pelo calor e alucinado pela intensidade do sol”, Meursault dispara cinco tiros sobre um árabe que desentendeu-se com seu amigo, um assassinato quase que desprovido de propósito e de sentido. E, na segunda parte, Meursault, processado pelos seus atos, confronta-se com a máquina da Justiça, onde, para Mega Ferreira, “os formalismos fazem deslizar o julgamento do crime cometido para uma outra suposta irregularidade que a sociedade julga ainda mais severamente: o seu caráter e os seus hábitos, revelados através da ‘insensibilidade’ que alegadamente demonstrou perante a morte da mãe”. Assim sendo, nós, os leitores, podemos notar que Meursault não está sendo punido meramente pelo crime que cometeu, mas também pela sua falta de anuência em relação às normas sociais.

Não é difícil imaginar o porquê da obra de Camus ter encantado a Bowie e a outros membros da juventude rebelde dos anos 1970: o Existencialismo, distanciando-se da religião, da moral tradicional e de outras amarras, concentrava-se no livre-arbítrio e legitimizava aquele sentido de singularidade tão recorrente entre os ícones artísticos dessa geração, assim como a noção, um pouco melancólica mas um pouco confortadora, do disparate que reside no coração das coisas.

3# INFERNO, DANTE ALIGHIERI

Inferno Bowie

“O Inferno são os outros”, proclamam os existencialistas entusiasticamente. Para Dante, isso está longe de ser verdade – o poeta florentino via o Inferno como lugar concreto e macabro, formado por nove círculos concêntricos, cada qual testemunhando piores tipos de pecadores e piores tipos de tortura, e culminando no mais terrível entre eles: o dos Traidores, onde nós podemos encontrar Brutus, Cássio, Judas Iscariotes e Lúcifer.

O Inferno consiste na primeira entre as três partes que formam A Divina Comédia, a qual Otto Maria Carpeaux, intelectual austríaco naturalizado brasileiro, considerava o maior entre todos os poemas da literatura universal.

Seguido pelo Purgatório e pelo Paraíso, o Inferno é na realidade a parte mais famosa da obra em questão, e muitas pessoas optam por lê-la à parte das demais. E qual seria o motivo? Diz John Took, professor do University College of London, que essa predileção se deve ao nosso fascínio em relação à violência e aos criminosos. Outros diriam que, talvez, se deva à vontade que temos de ver punidos os maus – que é mais forte do que a ânsia por ver recompensados os bons, se formos analisar a questão sob essa perspectiva.

“Dante criou a língua literária italiana”, diz Otto Maria Carpeaux. “Ele criou a própria literatura italiana: a primeira grande obra da literatura italiana é, ao mesmo tempo, a sua maior obra – a Divina Comédia”.

Essa obra altamente influente retrata a jornada de Dante por três mundos da teologia cristã, guiado pelos dois primeiros pelo poeta clássico Virgílio, e no Paraíso por sua amada Beatrice, uma vez que Virgílio, sendo um pagão, não teria o direito de adentrá-lo. Essa jornada consiste em uma alegoria da ascensão espiritual do autor, após um balanço feito no meio de sua vida, aos 35 anos.

Por que, você poderia perguntar, ler uma obra escrita há mais de 700 anos? (Sim, é isso mesmo: foi finalizada no ano de 1320).

Em primeiro lugar, eu ousaria dizer, porque você certamente encontrará pelo menos dois ou três pecados que o lançariam irremediavelmente ao Inferno dantesco. Eu, por exemplo, que sempre fui fascinada pelo tarot, sorri ao contemplar, no Canto XX, o castigo dos “feiticeiros e adivinhos”, e me imaginei, como eles, tendo a cabeça voltada para trás, de modo que “não mais possam ver o que está à sua frente, só o que está atrás”. Sim, senhores; faça uma análise de sua vida e da vida de seus familiares, amigos e conhecidos enquanto lê o Inferno, e veja que absolutamente ninguém terá a esperança de receber uma recepção no Paraíso.

O segundo ponto é que essa obra pode ser lida sob diversos prismas – da perspectiva política, gramatical, lexicológica, teológica, ética, filosóficas ou simplesmente estética, dispensando os comentários políticos e se concentrando na beleza dos trechos líricos do Inferno.

O que, na Divina Comédia, fascinou Bowie? Possivelmente, a sua maestria, a sua beleza e a sua profundidade. E, acreditamos, também o fato de que a obra de Dante não se limita a mostrar ao leitor uma estrutura intelectual, teológica e filosófica; ela é também uma visão do universo, e uma declaração poética.

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